Três elementos essenciais à prática do Zen
Fonte: O Livro de Ouro do Zen - A Sabedoria Milenar. David Scott; Tony Doubleday.
Grande Dúvida
Uma profunda sensação de dúvida, ao contrário de mero cinismo ou ceticismo, é geralmente encarada como uma experiência muito negativa que deverá ser repudiada ou ignorada. Em geral, somos estimulados a ter uma forte sensação a respeito de quem somos, o que fazemos, por que o fazemos, o que gostamos e não gostamos, e assim por diante: e fazemos esforços incríveis para manter essa aparência. Assim sendo, podemos conduzir nossas vidas através de uma persona construída a partir da coleção de suposições muito pouco questionadoras, e encarar a dúvida como autodestruição ou fraqueza. De fato, a grande autodestruição da dúvida é uma insinuação a respeito de seu verdadeiro valor, e a verdadeira "fraqueza" repousa em nossos esforços para fugir disso (sob os quais geralmente existe nosso medo elementar do desconhecido).
Logo que as pessoas se permitem questionar suas vidas, o choque algumas vezes é tal que elas receiam estar ficando loucas: "E é verdade: estamos fora de nós mesmos! E este é o ponto principal: deixar cair a nossa mente, para deixarmos de fazer dela a nossa morada" (Sensei Genpo Merzel). Certamente, a certeza faz nos sentirmos mais confortavelmente, porque oferece uma sensação de segurança. Mas está sujeita a se tornar rançosa e sem vida, enquanto a dúvida admite a possibilidade de mudança e renovação. Afinal, foi a dúvida a respeito do valor da vida, seu significado em face da impermanência, que levou Shakyamuni a deixar o palácio de seu pai e tornar-se um mendigo peregrino.
O Zenji Dogen fez ver que:
Impermanência é verdadeiramente a realidade perante nossos olhos. Não necessitamos esperar pelo ensinamento de outros, provar com alguma passagem de escritura ou através de algum princípio. Nasceu de manhã, morreu de tarde, a pessoa que vimos ontem já não está mais aqui hoje - estes são os fatos que vemos com nossos olhos e ouvimos com nossos ouvidos. Isto é o que vemos e ouvimos a respeito de outros. Aplicando isto aos nossos corpos, e pensando na realidade de todas as coisas, embora esperemos viver setenta ou oitenta anos, morremos quando temos de morrer.
Vimos como o conhecimento deste fato jogou Shakyamuni numa profunda dúvida sobre o valor da vida que ele tinha levado. O koan com o qual ele foi forçado a combater é talvez o mais elementar de todos: "Qual é o significado da vida em face da doença, velhice e morte inevitáveis?"
O Zenji Dogen chamou isto de "Grande Assunto". Até o ponto em que a dúvida é negada e insistimos em supostas certezas, isolamo-nos da realidade da impermanência, desta maneira evitando as questões que normalmente encaramos como "religiosas" ou "filosóficas".
O treinamento Zen não se propõe a formular respostas intelectuais. Ao contrário, está interessado na aceitação honesta da dúvida como nossa natural e original maneira de ser. O mestre Zen coreano Seung Sahn Sunim chamou isto de "A Mente que não Sabe". Já sugerimos que a certeza do Budismo é "socrática" - Bodhidharma sabia que não sabia quem ele era. A prática do Zen requer que nos entreguemos incondicionalmente à incerteza de cada momento.
Existe um koan: "Do topo de um mastro de 35 metros de altura, como você dá um passo para a frente?" O que importa é abandonarmos tudo o que nos apega à segurança e entregarmo‑nos à "mente que não sabe"; porém, temos que fazê‑lo sem cessar. Portanto, embora possamos reconhecer que não sabemos quem somos, nem mesmo que existimos como entidades separadas, alguma coisa sente, ouve, fala e vê. Tanto assim que o Zenji Dogen exorta‑nos:
Abra suas mãos. Simplesmente deixe tudo cair e veja. O que é corpo e mente? O que são atividades cotidianas? O que é vida e morte? E, por último, o que são montanhas e rios, a grande terra, seres humanos, animais e habitação? Pense nessas coisas com cuidado, repetidas vezes. Assim fazendo, a dicotomia do movimento e imobilidade é clara e naturalmente não-nascida. Entretanto, nesta hora, nada é estável. Ninguém pode entender, do ponto de vista humano. Muitos têm perdido isso de vista. Praticantes do Zen, realizem esta primeira metade do caminho! Não parem de praticar, até chegarem ao fim. Estes são os meus votos!
A dúvida é desconfortável para o ego. Ela solapa tudo: trabalho, família, amizade, propriedade, prática espiritual; ela é indiscriminada. Pelo fato de nos desiludir, também nos ilumina. Todavia, enquanto não pudermos apreciá‑la, pode nos causar depressão, desânimo e desalento. Mesmo que não nos sintamos "suicidas"ʺ podemos facilmente ser tentados a desistir da prática! Shakyamuni enfrentou este estágio crucial quando desistiu do ascetismo extremo. Contudo, não desistiu completamente. Ele teve fé em si mesmo pata reconhecer seu fracasso e a determinação para resolver sua dúvida pelo único meio que lhe restou. Sentou‑se imóvel onde estava e confrontou a vida, como se manifestava a cada momento da sua existência, da maneira mais detalhada e honesta possível. Ele praticou o Zazen.
Grande Fé
Sem termos fé em nós mesmos, não podemos conviver com a dúvida. A tensão entre as duas tanto é agravada como resolvida através de determinada prática; por este motivo, o Zenji Dogen disse:
Os praticantes do Caminho devem, antes de tudo, ter fé no Caminho. Os que têm fé no Caminho de Buda devem acreditar que o Self está dentro do Caminho desde o começo; que você está livre de desejos ilusórios, de ver as coisas de cabeça para baixo, os excessos, deficiências e erros. O aparecimento deste tipo de fé, o esclarecimento do Caminho e a prática constituem o fundamento da aprendizagem do Caminho.
Uma lição que o discípulo do Zen aprende repetidamente é que a fonte de apego ao ego é a falta de fé suficiente em si mesmo para repetidamente se deixar cair do mastro de 35 metros e dar um passo adiante. O mestre compassivo estará sempre incentivando o discípulo a fazê‑lo. Perseverando em alguma coisa, é possível desenvolver a fé em si mesmo; através do treinamento Zen, à medida que se compreende que a prática se torna mais amadurecida, essa fé torna‑se gradualmente menos vacilante. No início, entretanto, uma vez que estamos firmemente apegados à crença de que nada mais somos do que ego, trancados num corpo físico e separados de tudo mais, nossa prática só pode se basear numa grande fé nos ensinamentos de Buda. Temos que acreditar em Shakyamuni e em todos os mestres que o sucederam, quando dizem que cada um de nós é, desde o começo, sem começo, totalmente dotado da sabedoria e compaixão dos Budas. Então, podemos começar a questionar: "Se isto é assim, por que não posso vê‑lo claramente?" Portanto, com relação à fé, o Zen é uma religião como qualquer outra. Exige fé nos ensinamentos. Contudo, não é uma fé cega; ela incentiva o questionamento.
Grande Determinação
O Zenji Dogen disse que os discípulos do Caminho deveriam estar tão alertas na prática quanto estariam para apagar o fogo que consumisse seus cabelos! O treinamento deve ser coisa séria. Meia hora cochilando na almofada de meditação é apenas meia hora de cochilo. Na verdade, durante esse tempo, a mente Buda Não‑nascida está se manifestando como um ser senciente cochilando ‑ mas qual é a utilidade se o ser senciente não pode vê-lo?
Existe uma tradição no Japão de que os guerreiros se revelam nos discípulos do Zen; quando procuraram o Zen, na Idade Média, não tiveram dificuldade de entender a necessidade de um
treinamento fervoroso. O treinamento não estava separado do resto das suas vidas. Era uma batalha, uma briga de vida ou morte. Entre o mestre e o discípulo, na sala de entrevista, repousa sempre uma lâmina viva de uma espada desembainhada.
O Roshi Yasutani enfatiza que, embora na prática de ambos, Soto e Rinzai Zen, todos os três elementos estejam presentes, no estudo do koan "a dúvida é mais estimulante para o Satori, porque não nos permite descansar". Na prática do Soto, entretanto, onde o koan não constitui um hábito, o elemento da fé é mais importante: "Nós participamos de uma fé inabalável de que somos todos inerentemente Budas.! O método Soto não recomenda nenhum esforço depois da realização, mas deixar que aconteça dentro de nós da maneira que o Roshi Suzuki descreveu: deixar-se molhar durante uma caminhada no nevoeiro.
Entretanto, o Zenji Dogen disse: desde que pratiquemos com grande determinação, exclusiva e fervorosamente, dez entre dez realizarão o Caminho.
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