A finalidade do Zen



Fonte: O Livro de Ouro do Zen - A Sabedoria Milenar. David Scott; Tony Doubleday.

O Roshi Mumon Yamada disse:

"Para achar a joia, deve‑se acalmar as ondas; será difícil encontrá-la se agitarem a água. Onde as águas da meditação são claras e calmas, a joia da mente estará naturalmente visível." 

Muitas pessoas pularão dentro da água, se uma joia tiver caído no lago, e agitarão a água até que se torne tão turva que só encontrarão pedras e seixos. O homem sábio espera que a água se acalme de modo que a joia venha a brilhar naturalmente, por si própria. A disciplina do Zen é a mesma coisa. Quanto mais você tenta conhecer os princípios do Zen, lendo livros, mais se distancia da natureza  de  Buda. Se você tentar alcançar o conhecimento sentando‑se, sem especulação, entretanto, a joia da natureza de Buda começará a brilhar por si mesma, e você compreenderá o verdadeiro Self, o que estava procurando.

O Roshi Yamada comparou o Zazen ao deixar assentar as águas de um lago lamacento e   turbulento.  O  Não-Nascido é como a água clara, parada, na qual a "joia" da Iluminação brilha claramente. E, neste estado, reflete tudo o que está dentro dele. Como o reflexo perfeito do disco da lua em um lago calmo.
Normalmente, nossas mentes guardam uma semelhança próxima a uma piscina lamacenta, agitada por redemoinhos e correntes infindáveis. Elas são instáveis, cheias de confusão, rodopiando fora do controle  da  nossa vontade. Além disso, muitas vezes, só notamos isto quando começamos a tentar o Zazen e contar respirações. Geralmente, nossas identidades pessoais estão tão intimamente ligadas aos nossos processos de pensamento e preocupações emocionais, que realmente não notamos a falta de consistência e coesão no caminho que traçamos, e enganamos a nós mesmos, achando que estamos exercendo algum controle sobre nossa vida. Através do Zanin, vemos até que ponto não é bem  assim. À medida que nossa consciência começa a se concentrar na respiração, descobrimos que não devemos estar conscientemente envolvidos em todas as nossas atividades mentais sem fim. De fato, descobrimos que, quando agimos assim, estamos apenas aumentando o tumulto, ao passo que, se deixarmos os pensamentos e sentimentos simplesmente surgirem e passarem,  nossa atividade mental  começa a aquietar-se. Portanto, um mestre Soto Zen poderia dizer que, por exemplo, perseguir um koan é simplesmente turvar as águas.

O Roshi Suzuki, outro mestre Soto, explicou: "Falando rigorosamente, qualquer esforço que fazemos não é bom para nossa prática, porque cria ondas em nossa mente. É impossível, entretanto, conseguir uma calma absoluta da mente sem algum esforço. Temos de trabalhar, mas devemos esquecer de nós mesmos."

Se a prática do Zazen for uma mera repetição maquinal, não funcionará; empenhar‑se para conseguir a realização só nos tira do bom caminho; portanto, qual deverá ser o  nosso objetivo no Zazen? O Roshi Yasutani sugere uma finalidade três vezes interligada:

1. JORIKI (palavra sânscrita, Samadhi, geralmente traduzida como "concentração").

A primeira etapa do Zazen é desenvolver o Joriki, seja contando as  respirações, conforme já foi explicado, ou por meio de qualquer outro método, como, por exemplo, trabalhando um  koan ou  concentrando‑se  para  manter a  postura. Isto faz a atenção penetrar na avaliação de cada momento da experiência. Sentado imóvel desta maneira, a mente pode se pôr em ordem e a consciência   expandir‑se para além das preocupações mesquinhas do ego, e podemos experimentar uma certa  harmonia original entre mente, corpo e natureza. À medida que relaxamos nossa influência sobre as  opiniões da mente e as tensões dentro do corpo, a consciência torna-se aguda e lúcida, a respiração calma e profunda. Com o passar do tempo, começamos a desenvolver uma forte sensação de  paz  interior e poder.  Através do Joriki, começamos a avaliar a relação entre mente e corpo, e a importância da postura do Zazen.

O Roshi Suzuki disse:

A posição expressa a unidade da dualidade: não são dois, e não é um... Corpo e mente não são dois nem um. Se você pensa que corpo e mente são dois, está errado; se pensa que são um, também está errado; nosso corpo e mente são ambos dois e um. Normalmente, pensamos que, se alguma coisa não é una, deve ser mais de uma; se não é singular, é plural. Porém, na experiência real, nossa vida não é apenas plural, mas também singular. Cada um de nós é dependente e independente.

Para realizar o Joriki, temos de praticar o Zazen e, inicialmente, poderemos sentir mal jeito ou desconforto para manter a espinha reta e os joelhos no chão. Podemos até ser perdoados por concluirmos que as posturas  recomendadas são especificamente projetadas para produzir dor! Na maioria, quando defronta  com  o  desconforto  físico,  a mente começa a procurar uma forma de escapar e a tentação é ficar irrequieto ou mudar de posição. Quase sempre temos um limite para a paciência, quando aparece a dor,  pois vivemos na expectativa de que não devemos experimentá‑la.  Entretanto, a consequência natural de ter um corpo é que qualquer posição se torne desconfortável, se mantida por muito tempo. Assim sendo, apesar de não haver razão deliberada para provocar desconforto na postura do Zazen, não podemos evitá‑la tampouco.

Inesperadamente, à medida que o Joriki progride, o desconforto deixa de ser um empecilho ao Zazen e começa a se tornar um amigo. Sentado em sua companhia, podemos combater a "barreira" colocada pela mente contra uma posterior irritação física. Começamos a notar quanta miséria e tensão associamos à dor física que não resulta da dor em si, mas de nossa atitude em relação a ela (a mesma coisa acontece com a dor mental. Assim que deixamos de rejeitá‑la como uma experiência, permitindo que apareça e desapareça como qualquer  outra, cessa de ser um problema). 

Mantendo a coluna reta e respirando calmamente, o centro de gravidade se aprofunda na boca do estômago. Tradicionalmente este ponto é chamado de "hara" e está localizado dois dedos abaixo do  umbigo.  O hara é chamado de  centro do nosso ser e, às vezes, as pessoas sentem, quando o Joriki é profundo, que a consciência afunda até este ponto. O abdômen sobe e desce com a respiração, e a postura mente‑corpo sente-se relaxada e receptiva à sensação, sem qualquer sentido de vulnerabilidade.

À medida que os processos do pensamento ficam mais  vagarosos e o apego à discriminação se afrouxa, há um aumento proporcional da capacidade de aceitar, de todo o coração, cada  um e todos  os momentos da experiência como ela surge e passa. 
Então, precisamos observar que traduzir Joriki ou Samadi como "Concentração" não é totalmente certo. Além disso, a concentração por si só não é o verdadeiro propósito do Zazen: a verdadeira  finalidade  é ver as  coisas  como elas são, observar as coisas como são e deixar todas as coisas  fluírem...  A  prática do  Zen serve para expandir a nossa mente tão estreita. Deste modo, a  concentração  é apenas um auxílio para ajudar a compreender a "grande mente", ou a mente que é  tudo. Se você quiser descobrir o verdadeiro significado do Zen na sua vida cotidiana, tem de compreender o significado de manter a mente atenta à respiração e ao corpo, na postura certa do Zazen. Só desta maneira poderá experimentar a liberdade vital do Zen.

2. KENSHO-GODO (despertar para o Satori).

A  próxima etapa dos três propósitos do Zen, segundo o Roshi Yasutani, é o Kensho‑godo. Sua relação com o Joriki é descrita pelo Sensei Genpo Merzel:

Quando o poder do Samadi for suficientemente forte e nos tornarmos realmente seguros, quando tivermos completamente controlado a respiração, mente e corpo, aconteça o que acontecer - ouvir um pássaro chilrear, ver um pôr-do‑sol ou uma flor, olhar nos olhos de alguém, dar uma topada, ou ser atacado com uma paulada nas costas -, qualquer coisa pode abrir nosso olho quando estamos prontos. Desde que o olho de Prajna (sabedoria) esteja completamente aberto, jamais poderá ser fechado novamente. Mas até isto acontecer, a tendência é fechar, como o obturador das lentes de uma máquina fotográfica. Quando ele abre um pouco, temos uma pequena experiência, um Kensho ou um vislumbre de nossa verdadeira natureza, da essência da mente, o aspecto essencial do Self. Então, vemos todos os fenômenos como uma coisa só, tudo como um só corpo; compreendemos a interdependência de todas as coisas.

A primeira experiência do Kensho pode ser realmente estimulante. Pode parecer como se algo tivesse sido realizado. Há sempre um sentimento de alegria e libertação. No entanto, como o Roshi Yasutani enfatiza: "a não ser que estejamos fortalecidos pelo Joriki, uma única experiência do Kensho não terá grande efeito, em nossa vida, e aparecerá como uma mera lembrança".
Desde que o Kensho se torne uma  lembrança, a tendência será recriá‑lo. Entretanto, para nossa decepção, descobrimos  que isto  não é possível e que, quanto mais tentamos, mais insatisfeitos  ficamos - sempre comparando a experiência presente com a "imensa" que tivemos uma vez, anteriormente. Neste ponto, a prática tem de ser feita ao contrário; isto é, deixamos de lutar pelo  Kensho e começamos  a compreender que  ele esteve, a princípio, totalmente presente. Temos apenas de mergulhar nele e ficar molhados durante o passeio na neblina. Agora também começamos a ver que prática e Iluminação realmente são uma coisa só, e a interligação entre Kensho‑godo e Mujodo no taigen começa a ficar clara.

3. MUJODO NO TAIGEN (realização do Caminho de Buda na vida diária). 

Pelo simples fato de estarmos sentados e, de vez em quando, conscientes, durante o Zazen, manifestamos perfeitamente a realização de Buda em nossa vida. Nesta etapa, podemos falar da prática pelo bem da prática, sem objetivo nem propósito; somos totalmente capazes de apreciar o tipo de prática do Zazen que a escola Soto chama de "ʺShikantaza"ʺ (algumas vezes traduzido como "reflexão  serena"),  que significa literalmente "apenas sentar", sem fazer esforço, na completa realização de Buda. Esta é a mais pura manifestação do Zen, porque corpo e mente estão completamente esquecidos, e nós estamos em completa união com todo o universo.

O Roshi Suzuki disse:

A natureza de Buda é justamente outro nome da natureza humana, nossa verdadeira natureza humana. Assim sendo, mesmo que você não faça nada, na realidade estará fazendo alguma coisa. Estará expressando a si mesmo. Estará expressando sua verdadeira natureza. Seus olhos expressarão, sua voz expressará, sua maneira de proceder expressará. A coisa mais importante é expressar sua verdadeira natureza da maneira mais simples, mais adequada, e apreciá-la na mais simples existência.

O ponto importante que o Roshi Yasutani ressaltou em relação à finalidade do Zazen foi que, a menos que haja o Kensho, "você não apreende diretamente a verdade da sua natureza de Buda", não avalia que apenas sentar conscientemente sem escolha, sem fazer nenhum esforço específico, é a sua  mais pura expressão. Não é suficiente acreditar que a Mente cotidiana é o Caminho; a não ser que tenhamos o Kensho, não podemos saber o Caminho como ele é.

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